O primado da prática em Freire
A atividade jornalística, desde a escola, tem se
caracterizado por uma violenta dicotomia entre o saber sobre e o saber
fazer. A pesquisa teórica e a produção crítica
passam ao largo dos problemas da prática, como se esta fosse uma
dimensão estranha ao pensamento, e respondem a perguntas formuladas
em contextos alheios. O saber fazer, no mais das vezes, despreza esta
teoria e se reproduz com base na experiência acumulada e nas influências
culturais, políticas, econômicas e tecnológicas que
atuam sobre ela. Este descompasso, no entanto, se é típico
das áreas de jornalismo e da comunicação social,
não é uma exclusividade delas. E foi por diagnosticá-lo
e pretender enfrentá-lo na sua área de atuação,
a pedagogia, que Paulo Freire desenvolveu o seu método de ensino-aprendizagem
e toda a sua concepção filosófica da educação.
Desta forma, uma aplicação adequada das idéias de
Freire ao campo jornalístico não deve produzir apenas uma
ferramenta teórica que ajude a compreendê-lo do ponto de
vista meramente descritivo. A compreensão da realidade, para Freire,
é apenas um momento do ciclo maior que leva a sua permanente transformação
pelo ser humano que a compreende: “... esse movimento do mundo à
palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em
que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele
fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer
que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura
do mundo mas por uma certa forma de escrevê-lo, ou de reescrevê-lo,
quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática
consciente.” (FREIRE, 1982:22)
Somente o compromisso do pensamento com a prática estabelece para
Freire um “contexto teórico verdadeiro”:
“Não há contexto teórico verdadeiro
a não ser em unidade dialética com o contexto concreto.
Nesse contexto, onde os fatos se dão, nos encontramos envolvidos
pelo real, molhados nele, mas não necessariamente percebendo
a razão de ser dos mesmos fatos, de forma crítica. No
contexto teórico, tomando distância do concreto, buscamos
a razão de ser dos fatos. Em outras palavras, procuramos superar
a mera opinião que deles temos e que a tomada de consciência
dos mesmos nos proporciona, por um conhecimento cabal, cada vez mais
científico em torno deles. No contexto concreto somos sujeitos
e objetos em relação dialética com o objeto;
no contexto teórico assumimos o papel de sujeitos cognoscentes
da relação sujeito-objeto que se dá no contexto
concreto para, voltando a este, melhor atuar como sujeitos em relação
ao objeto. (...) Daí a necessidade que temos, de um lado, de
ir mais além da mera captação da presença
dos fatos, buscando assim, não só a interdependência
que há entre eles, mas também o que há entre
as parcialidades constitutivas da totalidade de cada um e, de outro
lado, a necessidade de estabelecermos uma vigilância constante
sobre nossa própria atividade pensante.” (FREIRE, 1976:135-6) |
Ao longo de sua vida intelectual, Freire se tornará cada mais enfático
em relação à necessidade desta vigilância do
pensamento: “...pensar sempre a prática. De fato, pensar a prática
de hoje não é apenas um caminho eficiente para melhorar
a prática de amanhã, mas também a forma eficaz de
aprender a pensar certo” (FREIRE & FREI BETTO, 1986:9). Para o educador,
a Universidade não estaria mais ensinando a “pensar certo” neste
sentido: “...tal qual um estudante universitário, com seu treinamento
abstrato em linguagem abstrata, em que a ênfase se faz na descrição
dos conceitos que devem mediar a compreensão do concreto. Em lugar
de você usar o conceito para mediar, como mediador da compreensão
do concreto, você termina ficando na descrição do
conceito. Este é o comportamento do nosso jovem dentro da universidade.”
(FREIRE & FREI BETTO, 1986:10).
Para Paulo Freire, o trabalho teórico desenvolvido à margem
de qualquer prática tenderia a se transformar em mero jogo: “Nossa
experiência na universidade tende a nos formar à distância
da realidade. Os conceitos que estudamos na universidade podem trabalhar
no sentido de nos separar da realidade concreta à qual, supostamente,
se referem. Os próprios conceitos que usamos em nossa formação
intelectual e em nosso trabalho estão fora da realidade, muito
distantes da sociedade concreta. Em última análise, tornamo-nos
excelentes especialistas, num jogo intelectual muito interessante – o
jogo dos conceitos: é um balé de conceitos” (FREIRE &
SHOR, 1987:131).
Por fim, FREIRE adverte que esta redução da atividade intelectual
a um jogo acaba por desvalorizá-la, inibindo a sua força
transformadora: “quanto mais essa dicotomia entre ler palavras e ler realidade
se exerce na escola, mais nos convencemos de que nossa tarefa, na escola
ou na faculdade, é apenas trabalhar com conceitos, apenas trabalhar
com textos que falam de conceitos. Porém, na medida em que estamos
sendo treinados numa vigorosa dicotomia entre o mundo das palavras
e o mundo real, trabalhar com conceitos escritos num texto significa
obrigatoriamente dicotomizar o texto do contexto. E então nos tornamos,
cada vez mais, especialistas em ler palavras, sem nos preocupar em vincular
a leitura com uma melhor compreensão do mundo. Em última
análise, distinguimos o contexto teórico do contexto concreto.
Uma pedagogia dicotomizada como esta diminui o poder do estudo intelectual
de ajudar na transformação da realidade” (FREIRE & SHOR,
1987:165).
Para BERTHOFF (1987:xxvi), a prática de Freire é inteiramente
pragmática: “Paulo Freire é um dos verdadeiros herdeiros
de William James e de C.S. Pierce. Ele nos diz: o modo como funciona
a sua teoria e o que ela faz mudar lhe dirá melhor o que é
a sua teoria. Ele quer que consideremos o valor de uma idéia
perguntando o que que ela importa.” Embora reconheça a importância
desta influência em sua formação, Freire distinguirá
entre um pragmatismo que aprendeu da Escola Nova de John Dewey, e que
considera progressista, de um outro “pragmatismo” posto entre aspas, típico
do neoliberalismo, que conduz ao fatalismo e à acomodação,
com o qual não se identifica (FREIRE, 2000:123-4).
É que além do pragmatismo norte-americano, Freire sofrerá
influência da concepção de práxis que encontra
na leitura de Gramsci, de Marx e de seus intérpretes, e que vai
ajudar a fundamentar mais tarde a sua proposta pedagógica, explicada
ela mesmo como “teoria de conhecimento posta em prática”. Teoria
do conhecimento que Freire irá buscar em filósofos como
Karel Kosík, Adolfo Sánchez-Vásquez e Álvaro
Vieira Pinto, assim como em obras do próprio Marx.
Em vários momentos, Freire se refere às Teses sobre
Feuerbach, destacando o fato do pensador alemão haver escrito
em apenas uma página e meia “uma das mais importantes obras da
filosofia ocidental”. Como destaca Sánchez Vázquez (1986:149),
“Marx formula em suas Teses sobre Feuerbach uma concepção
de objetividade, fundamentada na práxis, e define a sua filosofia
como a filosofia de transformação do mundo. (...) Isto é,
ao colocar no centro de toda relação humana a atividade
prática, transformadora do mundo, isso não pode deixar de
ter consequências profundas no terreno do conhecimento. A práxis
aparecerá como fundamento (Tese I), critério de verdade
(Tese III) e finalidade do conhecimento.” Desta forma, o primado da prática
em Freire significará um compromisso da teoria com a transformação
da realidade. E nessa perspectiva é que ele abordaria a questão
da prática jornalística.
A negação do jornalismo como forma
de conhecimento e o pensamento de Freire
Em 1987, durante a elaboração de minha dissertação
de mestrado na USP, tive a oportunidade de acompanhar uma disciplina ministrada
por Paulo Freire, então professor-visitante da Escola de Comunicações
e Artes, e de ser recebido em sua casa para discutir minha pesquisa sobre
o jornalismo como forma de produção de conhecimento e o
seu ensino (MEDITSCH, 1992). Na ocasião, expus rapidamente ao pedagogo
a tese do jornalismo enquanto forma de conhecimento sustentada por meu
colega Adelmo GENRO FILHO (1987), e comparei a atividade jornalística
com a educativa, enquanto “uma teoria do conhecimento posta em prática”,
como Paulo Freire propunha, ainda que em uma prática diferenciada.
Freire considerou a analogia válida e me entusiasmou a avançar
no projeto. Embora evitasse tratar teoricamente a questão da mídia
em sua obra, por não se considerar um especialista competente no
assunto, ela o interessava dentro do horizonte geral da teoria do conhecimento
que desenvolvia em seus trabalhos sobre educação, como testemunhou
a Sérgio Guimarães em um de seus livros dialogados (FREIRE
& GUIMARÃES, 1984:40).
A questão do Jornalismo enquanto conhecimento, que levei a ele,
era produto do acúmulo de uma discussão antiga, envolvendo
diversas interpretações. Para simplificar a exposição,
vou aqui classificar estas interpretações, que compreendem
diferentes nuances, em três abordagens principais:
A primeira delas nasce da definição de conhecimento não
como um dado concreto, mas como um ideal abstrato a alcançar. Uma
vez estabelecido este ideal, passa a ser o parâmetro para julgar
toda a espécie de conhecimento produzido no mundo humano. A era
moderna, com as fantásticas realizações da técnica
na transformação da vida humana e no domínio da natureza,
acabou por realizar o sonho dos filósofos positivistas de entronizar
“a Ciência” como única fonte de conhecimento digna de crédito.
O “método científico” foi escolhido como o parâmetro
adequado para se conhecer e dominar o mundo, e toda a tentativa de conhecimento
estabelecida à margem deste padrão foi desmoralizada, considerada
imperfeita e pouco legítima.
Esta visão que entroniza “a Ciência” como “o método
de conhecimento” estabelece a primeira das abordagens do problema do Jornalismo
em relação ao conhecimento: para ela, o Jornalismo não
produz conhecimento válido, e contribui apenas para a degradação
do saber. São notáveis as observações do intelectual
austríaco Karl KRAUS a este respeito, escritas no início
do século:
“O que a sífilis poupou será devastado
pela imprensa. Com o amolecimento cerebral do futuro, a causa não
poderá mais ser determinada com segurança.(...) A imagem
de que um jornalista escreve tão bem sobre uma nova ópera
como sobre um novo regulamento parlamentar tem algo de acabrunhante.
Seguramente, ele também poderia ensinar um bacteriologista,
um astrônomo e até mesmo um padre. E se viesse a encontrar
um especialista em matemática superior, lhe provaria que se
sente em casa numa matemática ainda mais superior.” |
Kraus não representa um crítico isolado. Seu pensamento
influenciou profundamente muitos outros intelectuais de respeito, como
Walter Benjamin e os fundadores da Escola de Frankfurt. Apesar das críticas
que este ponto de vista vêm recebendo nos últimos anos, sua
influência ainda pode ser constatada em grande parte da produção
acadêmica contemporânea sobre o Jornalismo, que de uma forma
ou de outra o situa no campo do conhecimento como uma ciência mal
feita, quando não como uma atividade perversa e degradante.
Obviamente, não seria essa a posição de Freire sobre
o jornalismo, embora tivesse uma posição bastante crítica
sobre o seu exercício, especialmente na realidade brasileira na
época em que conversamos. Na ocasião, ele falou um pouco
de sua percepção do trabalho dos profissionais da “grande
imprensa”, como se dizia. Na sua opinião, o objetivo comercial
dominante estava impossibilitando um trabalho mais sério por parte
dos jornalistas brasileiros, especialmente do telejornalismo, e ele próprio
se sentia “usado” quando era chamado para alguma entrevista, segundo ele
mais para “rechear” um produto comercial do que para efetivamente ser
levado em consideração no que tinha a dizer.
É de se considerar que Freire havia retornado do exílio
há poucos anos, período em que conviveu mais de perto com
a imprensa européia, que tradicionalmente tem maior respeito pelo
trabalho intelectual e pela pluralidade de idéias, para não
dizer pelo seu público. No diálogo com Sérgio Guimarães,
havia registrado que, em sua opinião, o público europeu,
francês ou suíço, não toleraria a “apelação”
da TV comercial brasileira ou norte-americana, embora vivesse em sociedades
igualmente capitalistas (FREIRE & GUIMARÃES, 1984:35). Esta
observação o levava a crer, otimistamente, que um pequeno
progresso em nossas sociedades poderia provocar melhoras significativas
na forma de utilizar a mídia que, em sua opinião, havia
superado a escola enquanto instituição em vários
aspectos e por isso deveria ser aproveitada em qualquer projeto educativo.
Freire diante das abordagens quantitativa e
qualitativa
Uma segunda forma de abordagem do Jornalismo enquanto conhecimento
o situa ainda como uma ciência menor, mas admite já que não
é de todo inútil. Pode-se localizar a origem desta abordagem
no trabalho do ex-jornalista e sociólogo do conhecimento Robert
Park, que publicou um artigo sobre o tema em 1940. A partir da perspectiva
filosófica do pragmatismo de William James, que abandona o conhecimento
como um ideal para observá-lo como um dado da vida humana, concluindo
que as pessoas e as coletividades lidam simultaneamente em suas vidas
com várias espécies de conhecimento, Park começa
a definir o Jornalismo a partir do que tem de diferente, do que lhe é
específico como forma de conhecimento da realidade.
Embora admita a distinção entre tipos de conhecimento, o
sociólogo norte-americano não avança neste aspecto
muito além do que James já havia realizado ao distinguir
entre um “conhecimento de” utilizado no cotidiano e um “conhecimento sobre”,
sistemático e analítico, como o produzido pelas ciências.
Para situar o Jornalismo, Park vai propor a existência de uma gradação
entre as duas espécies de conhecimento e colocar a notícia
num nível intermediário entre elas.
Este tipo de diferenciação do Jornalismo a partir do grau
de profundidade que alcança comparativamente à Ciência
ou à História é admitida pelos próprios jornalistas.
Ao fazerem comparações entre o seu trabalho e o dos cientistas,
os jornalistas costumam sugerir esta forma de gradação.
Quando não se refere à profundidade de análise, a
gradação pode referir-se também à velocidade
da produção, e o Jornalismo já foi definido como
“a História escrita à queima-roupa”.
O enquadramento da forma de conhecimento do jornalismo estabelecido por
Park, num grau intermediário entre o senso comum e a ciência,
encontra apoio na distinção entre estas formas de conhecer
que é realçada ao longo da obra de Freire. Num de seus últimos
livros (1996:34), o pedagogo reafirma:
“Não há para mim, na diferença
e na distância entre a ingenuidade e a criticidade, entre o
saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos
metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação.
A superação e não a ruptura se dá na medida
em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade,
pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza.
Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade
epistemológica, metodicamente ‘rigorizando-se’ na sua aproximação
ao objeto, conota seus achados de maior exatidão. Na verdade,
a curiosidade ingênua que, ‘desarmada’, está associada
ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se,
aproximando-se de forma cada vez metodicamente rigorosa do objeto
cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda
de qualidade mas não de essência.” |
No entanto, como propõe Freire, entre os vários graus de
conhecimento observados por Park ocorre também uma mudança
de qualidade e, neste sentido, a comparação quantitativa
dos atributos do Jornalismo em relação à Ciência
ou à História, estabelecida pelo sociólogo norte-americano,
pode ser útil para elucidar algumas das suas diferenças,
mas parece insuficiente para definir o que ele tem de específico.
Daí que tenha surgido uma terceira abordagem, que dá mais
ênfase não ao que o Jornalismo tem de semelhante, mas justamente
ao que ele tem de único e original. Para esta terceira abordagem,
que tem sido desenvolvida por teóricos brasileiros, especialmente
na Universidade Federal de Santa Catarina, o Jornalismo não revela
mal nem revela menos a realidade do que a ciência: ele simplesmente
revela diferente. E ao revelar diferente, pode mesmo revelar aspectos
da realidade que os outros modos de conhecimento não são
capazes de revelar.
Conforme Freire (1994:226), “uma das condições para que
um fato, um fenômeno, um problema seja entendido em sua rede de
relações, é que se torne, dialeticamente, um destacado
percebido em si. Primeiro que o compreendamos como algo nele mesmo para
assim perceber que sua compreensão envolve suas relações
com outros dados ou fatos.” É esta força na revelação
dos fatos que caracteriza o jornalismo e o distingue da prática
teórica exercida na academia e sempre criticada por Freire, como
em seu diálogo com o educador norte-americano Ira Shor:
“Nossa experiência na universidade tende a
nos formar à distância da realidade. Os conceitos que
estudamos na universidade podem trabalhar no sentido de nos separar
da realidade concreta à qual, supostamente, se referem. Os
próprios conceitos que usamos em nossa formação
intelectual e em nosso trabalho estão fora da realidade, muito
distantes da sociedade concreta. (...) Assim, nossa linguagem corre
o risco de perder o contato com o concreto. Quanto mais somos assim,
mais distantes estamos da massa das pessoas, cuja linguagem, pelo
contrário, é absolutamente ligada ao concreto. (...)
Não dicotomizo essas duas dimensões do mundo – vida
diária do rigor, senso comum do senso filosófico, na
expressão de Gramsci. Não compreendo conhecimento crítico
ou científico que aparece por acaso, por um passe de mágica
ou acidente, como se não precisasse se submeter ao teste da
realidade. O rigor científico vem de um esforço para
superar uma visão ingênua do mundo. A ciência sobrepõe
o pensamento crítico àquilo que observamos na realidade,
a partir do senso comum.” (FREIRE & SHOR, 1987:131) |
Além de uma maneira distinta de produzir conhecimento, o jornalismo
também tem uma maneira diferenciada de o reproduzir, vinculada
à função de comunicação que lhe é
inerente. O Jornalismo não apenas reproduz o conhecimento que ele
próprio produz, reproduz também o conhecimento produzido
por outras instituições sociais. A hipótese de que
ocorra uma re-produção do conhecimento, mais complexa
do que a sua simples transmissão, ajuda a entender melhor o papel
do Jornalismo no processo de cognição social. Esta hipótese
é corroborada por Freire em seu trabalho sobre a educação:
“...a curiosidade diante do objeto a ser desvelado,
esse não estar conformado com o que se tem e com o que se sabe;
esse sair de dentro da gente mesmo, essa procura impacientemente paciente,
portanto metódica, bem comportada mas não acomodada;
essa posição de quem vai realmente tirando o véu
das coisas, é absolutamente indispensável ao sujeito
que conhece e ao sujeito que quer conhecer, ou que conhece o que já
se conhece e que quer criar o que ainda não se conhece. Essa
curiosidade é o oposto da posição dócil,
apassivada, de puro recipiente de um pacote que se transfere ao sujeito
dócil. Daí a crítica que fiz, anos atrás,
na Pedagogia do Oprimido, ao que chamei de educação
bancária.... a crítica que fiz à posição
do professor ou do educador como transferidores de conhecimento, que
para mim é um absurdo. O conhecimento não se transfere:
se sabe, se conhece, se cria, se recria, curiosamente, arriscadamente.”
(FREIRE & GUIMARÃES, 1982: 78-9) |
Ao utilizar a distinção entre “conhecimento de” e “conhecimento
sobre”, o primeiro sintético e intuitivo, o segundo sistemático
e analítico, dentro da tradição do pragmatismo, Robert
Park observa que o Jornalismo realiza para o público as mesmas
funções que a percepção realiza para os indivíduos.
A partir de FREIRE, poder-se-ia dizer que o jornalismo opera a tomada
de consciência, que se distingue da conscientização:
“A tomada de consciência se verifica na posição
espontânea que meu corpo consciente assume em face do mundo,
da concretude dos objetos singulares. A tomada de consciência
é, em última análise, a presentificação
à minha consciência dos objetos que capto no mundo em
que e com que me encontro. Por outro lado, os objetos se acham presentificados
à minha consciência e não dentro dela.(...) A
tomada de consciência é o ponto de partida. É
tomando consciência do objeto que eu primeiro me dou conta dele.
Dando-se à minha curiosidade, o objeto é conhecido por
mim..” (FREIRE, 1994:224-5) |
Conforme LAGE (1992:14-5), o Jornalismo descende da mais antiga e singela
forma de conhecimento – só que, agora, projetada em escala industrial,
organizada em sistema, utilizando fantástico aparato tecnológico”.
GENRO FILHO (1987:58) também ressalva que o Jornalismo como gênero
de conhecimento difere da percepção individual pela sua
forma de produção: nele, a imediaticidade do real é
um ponto de chegada, e não de partida. Esta ressalva é importante
para se discutir os problemas do Jornalismo como forma de conhecimento
e de seus efeitos. No entanto, ao se fixar na imediaticidade do real,
o Jornalismo opera no campo lógico do senso comum, e esta característica
definidora é fundamental.
A partir dela, pode-se questionar até que ponto o Jornalismo como
modo de conhecimento pode ser rigoroso. O conhecimento do senso comum
foi até bem pouco tempo desprezado pela teoria, uma vez que toda
a ciência moderna se constituiu com base na sua negação.
Mas, na medida em que as ciências humanas passaram a valorizar a
observação do cotidiano para o desvendamento das relações
sociais, o que era visto como "irrelevante, ilusório e falso"
começou a aparecer não só como um objeto digno de
consideração pela teoria do conhecimento mas, em última
análise, como o seu objeto principal (SANTOS, 1988:8).
Conforme BERGER & LUCKMANN (1966:40), o senso comum corresponde a
uma atitude cognitiva percebida como natural. "A atitude natural
é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque
se refere a um mundo que é comum a muitos homens. O conhecimento
do senso comum é o conhecimento que eu partilho com os outros nas
rotinas normais, evidentes da vida cotidiana". Além disso,
a atitude cognitiva natural estabelece uma certa percepção
da realidade como dominante:
"Comparadas à realidade da vida cotidiana, as outras realidades
aparecem como campos finitos de significação, enclaves dentro
da realidade dominante marcada por significados e modos de experiência
delimitados. A realidade dominante envolve-as por todos os lados, por
assim dizer, e a consciência sempre retorna à realidade dominante
como se voltasse de uma excursão”. "Todos os campos finitos
de significação caracterizam-se por desviar a atenção
da realidade da vida cotidiana. (...) É importante, porém,
acentuar que a realidade da vida cotidiana conserva a sua situação
dominante mesmo quando estes 'transes' ocorrem. Se nada mais houvesse,
a linguagem seria suficiente para nos assegurar sobre este ponto. A linguagem
comum de que disponho para a objetivação de minhas experiências
funda-se na vida cotidiana e conserva-se sempre apontando para ela mesma
quando a emprego para interpretar experiências em campos delimitados
de significação" (BERGER & LUCKMANN, 1966:43-4).
É o fato de operar no campo lógico da realidade dominante
que assegura ao modo de conhecimento do Jornalismo tanto a sua fragilidade
quanto a sua força enquanto argumentação. É
frágil, enquanto método analítico e demonstrativo,
uma vez que não pode se descolar de noções pré-teóricas
para representar a realidade. É forte na medida em que essas mesmas
noções pré-teóricas orientam o princípio
de realidade de seu público, nele incluídos cientistas e
filósofos quando retornam à vida cotidiana vindos de seus
campos finitos de significação. Em conseqüência,
o conhecimento do jornalismo será forçosamente menos rigoroso
do que o de qualquer ciência formal mas, em compensação,
será também menos artificial e esotérico.
Evidentemente, como todo conhecimento, o senso comum não é
tão democrático como sugere o termo. O conhecimento é
repartido socialmente, devido ao simples fato do indivíduo não
conhecer tudo o que é conhecido por seus semelhantes, e vice-versa,
processo que culmina em sistemas de perícia extraordinariamente
complexos. A distribuição social de conhecimentos, desta
forma, não se dá apenas em termos quantitativos (uns conhecem
mais do que outros), mas também qualitativos (conhecem coisas diferentes).
Cada campo de conhecimento é compartilhado por um auditório
específico. A questão dos auditórios, assim como
a dos campos lógicos, estabelece diferenças entre o modo
de conhecimento das ciências e do Jornalismo.
A linguagem formal dos cientistas justifica-se por sua universalidade,
a universalidade ideal de seu auditório. Porém, esta universalidade
será igualmente formal, uma universalidade de direito mas não
de fato, uma vez que esta linguagem só circula por determinadas
redes e cria uma incomunicação crescente entre os dialetos
das diversas especialidades. Neste sentido, quanto mais as ciências
produzem conhecimento, mais tornam opaco este conhecimento (VIEIRA PINTO,
1969:165-6). Para penetrar nesta opacidade, é necessário
também penetrar na rede institucional que a mantém, através
dos processos pedagógicos específicos.
Já o ideal de universalidade do Jornalismo caminha em outra direção.
O auditório universal que idealmente persegue refere-se a uma outra
rede de circulação de conhecimento, constituída pela
comunicação para devolver à realidade a sua transparência
coletiva. É uma universalidade de fato, embora precária,
porque só estabelecida institucionalmente de forma indireta e imperfeita,
tal e qual o espaço público pressuposto pelo ideal democrático
que a precede e a requer. Sua amplitude é também limitada
em outra direção, a intenção do emissor na
delimitação do universo do público alvo. Mas é
na preservação deste auditório ideal que o Jornalismo
encontra uma de suas principais justificações sociais: a
de manter a comunicabilidade entre o físico, o advogado, o operário
e o filósofo. Enquanto a ciência evolui reescrevendo o conhecimento
do senso comum em linguagens formais e esotéricas, o Jornalismo
trabalha em sentido oposto. Daí Freire destacar a importância
de uma imprensa livre mesmo para quem dela não se utiliza ou não
se dá conta:
“Uma coisa, por exemplo, é a significação
que pode ter a liberdade de imprensa para as populações
famintas, miseráveis, de nosso país, e outra o que ela
representa para as classes populares que já comem, vestem,
e dormem mais ou menos. O trágico é que a liberdade
de imprensa é absolutamente fundamental quer para os que comem,
quer para os que não comem. (...) Muito dificilmente uma população
faminta e iletrada, mesmo que às vezes tocada pelo rádio,
pode alcançar, antes de comer, o valor para si mesma de uma
imprensa livre. Uma vez exercido o direito básico de comer,
a negação do exercício de outros direitos vai
sendo sublinhada.” (FREIRE, 1994:191) |
Partindo de premissas retiradas necessariamente do senso comum, a argumentação
da notícia parte do que o auditório já sabia, ou
era suposto saber. "Se o avião caiu, é claro que existia
o avião e que o avião pertence à categoria das coisas
capazes de cair" (LAGE, 1979:41). Em virtude disto, a novidade contida
numa notícia é limitada. Como propõe VAN DIJK (1980:176),
esta novidade "é a ponta de um iceberg de pressuposições
e, em consequência, da informação previamente adquirida”.
Tal constatação sugere que o conhecimento proporcionado
pelo Jornalismo tem um duplo papel na construção do senso
comum, em que a revelação da novidade refere-se a apenas
um aspecto. A compreensão da notícia envolve o processamento
"de grandes quantidades de informação estruturadora,
repetida e coerente, que sirva como base para ampliações
mínimas e outras mudanças em nossos modelos do mundo"
(VAN DIJK, 1980:248). O Jornalismo serve ao mesmo tempo para conhecer
e re-conhecer.
Por outro lado, a revelação da novidade é um dado
estrutural da retórica do Jornalismo - a conclusão a que
conduz a sua argumentação. A forma com que chega a esta
novidade também é diferente daquela utilizada pela ciência.
Enquanto a ciência, abstraindo um aspecto de diferentes fatos, procura
estabelecer as leis que regem as relações entre eles, o
Jornalismo, como modo de conhecimento, tem a sua força na revelação
do fato mesmo, em sua singularidade, incluindo os aspectos forçosamente
desprezados pelo modo de conhecimento das diversas ciências.
Como propusemos em trabalho anterior, no método científico
a hipótese pressupõe uma experimentação controlada,
isto é, um corte abstrato na realidade através do isolamento
de variáveis que permita a obtenção de respostas
a um questionamento baseado em sistema teórico anterior. O Jornalismo,
por sua vez, não parte de uma hipótese nem de sistema teórico
anterior, mas da observação não controlada (do ponto
de vista da metodologia científica) da realidade por parte de quem
o produz. Também se diferencia das ciências pelo tipo de
corte abstrato que propõe. O isolamento de variáveis é
substituído pelo ideal de apreender o fato de todos os pontos de
vista relevantes, ou seja, em sua especificidade (MEDITSCH, 1989).
GENRO FILHO (1987:163) apóia-se nas categorias hegelianas do universal,
particular e singular para definir o modo de conhecimento produzido socialmente
pelo Jornalismo:
"...o critério jornalístico de
uma informação está indissoluvelmente ligado
à reprodução de um evento pelo ângulo de
sua singularidade. Mas o conteúdo da informação
vai estar associado (contraditoriamente) à particularidade
e universalidade que nele se propõem, ou melhor, que são
delineados ou insinuados pela subjetividade do jornalista. O singular,
então, é a forma do Jornalismo, a estrutura interna
através da qual se cristaliza a significação
trazida pelo particular e o universal que foram superados. O particular
e o universal são negados em sua preponderância ou autonomia
e mantidos como o horizonte do conteúdo”. |
“Assim, como jornalista, você evidentemente tem a sensibilidade
da existência”, observa Freire a partir desta característica
(FREIRE & GUIMARÃES, 1987:70). A cristalização
no singular explica também como o Jornalismo consegue produzir
informação nova com uma grande economia de meios em relação
aos outros modos de conhecimento: "Como o novo aparece sempre como
singularidade, e esta sempre como o aspecto novo do fenômeno, a
tensão para captar o singular abre sempre uma perspetiva crítica
em relação ao processo. A singularidade tende a ser crítica
porque ela é a realidade transbordando do conceito, a realidade
se recriando e se diferenciando de si mesma" (GENRO FILHO, 1987:212).
Pode-se assim chegar mais perto do que seria uma fisiologia normal
do Jornalismo como forma de produção e reprodução
de conhecimento. É possível, como propõe LAGE (1979:37),
isolar teoricamente "uma organização relativamente
estável", dissociando esse "componente lógico"
das ideologias que inevitavelmente o contaminam na realidade concreta
- o "componente ideológico" que caracteriza a patologia
diagnosticada pelos seus críticos, para encontrar a sua especificidade,
uma vez que a ideologia é um fenômeno social mais geral.
Esta perspectiva também encontra guarida na posição
de Freire sobre a mídia:
“Ao pensar sobre o problema dos chamados meios de
comunicação, portanto, fica claro, logo assim de saída,
que me sinto um homem do meu tempo. Não sou contra a televisão.
Acho, porém, que é impossível pensar o problema
dos meios sem pensar a questão do poder. O que vale dizer:
os meios de comunicação não são bons nem
ruins em si mesmos. Servindo-se de técnicas, eles são
o resultado do avanço da tecnologia, são expressões
da criatividade humana, da ciência desenvolvida pelo ser humano.
O problema é perguntar a serviço de quê e a serviço
de quem os meios de comunicação se acham. E esta é
uma questão que tem a ver com o poder e que é política,
portanto. A convicção que tenho, é a de que,
resolvida essa situação, de fato problemática,
do ponto de vista técnico você tem solução.”
(FREIRE & GUIMARÀES, 1984:14) |
Por fim, é preciso ressaltar que o conteúdo do jornalismo,
ao estar preso ao senso comum, está também necessariamente
vinculado a um contexto. O texto só adquire sentido dentro de um
contexto. Isto dificulta tanto a sistematização quanto a
acumulação destes conteúdos, contrariamente ao que
ocorre com a ciência que isola o texto do contexto. Mas, neste sentido,
o conhecimento produzido pelo jornalismo é mais sintético
e mais holístico do que aquele produzido pela ciência. Neste
aspecto, criticando a postura de uma certa ciência social tecnicista,
Freire também reconhecerá um mérito na atividade
jornalística:
“O descaso pelos sentimentos como deturpadores da
pesquisa e de seus achados, o medo da intuição, a negação
categórica da emoção e da paixão, a crença
nos tecnicismos, tudo isso termina por nos levar a convencer-nos de
que, quanto mais neutros formos em nossa ação, tanto
mais objetivos e eficazes seremos. Mais exatos, mais cientistas, nada
ideólogos nem ‘jornalistas’, portanto. Não quero negar
a possibilidade de um especialista estranho ao contexto onde se deu
ou onde se está dando uma certa prática fazer parte
de uma equipe avaliadora com acerto e eficácia. Sua eficácia
porém vai depender da capacidade que tenha de abrir-se à
‘alma’ da cultura onde se deu ou se está dando a experiência
e não apenas da capacidade, também necessária,
de apreender a racionalidade da experiência por meio de caminhos
múltiplos. Abrir-se à ‘alma’ da cultura é deixar-se
‘molhar’, ‘ensopar’ das águas culturais e históricas
dos indivíduos envolvidos na experiência.” (FREIRE, 1991:110)
|
Embora nesta perspectiva se considere que o Jornalismo produz e reproduz
conhecimento, não apenas de forma válida mas também
útil para as sociedades e seus indivíduos, não se
pode deixar de considerar que esse conhecimento por ele produzido tem
os seus próprios limites lógicos e, quando observado na
prática, apresenta também uma série de problemas
estruturais. Como toda outra forma de conhecimento, aquela que é
produzida pelo Jornalismo será sempre condicionada histórica
e culturalmente por seu contexto e subjetivamente por aqueles que participam
desta produção. Estará também condicionada
pela maneira particular como é produzida.
Nas últimas décadas se multiplicaram os trabalhos científicos
que salientam o fato do Jornalismo não ser uma imagem da realidade
extraída unicamente desta realidade, mas sim uma construção
onde os projetos, as técnicas e seu manejo, as ferramentas e as
matérias primas também interferem no produto final (TRAQUINA,
1993). Inúmeras mediações condicionam o modo como
o Jornalismo cria e processa a informação sobre a realidade,
desde o schemata profissional (MÉRÓ, 1990) - o modo particular
como os jornalistas vêem o mundo, passando pelos objetivos, a estrutura
e a rotina das organizações onde trabalham, as condições
técnicas e econômicas para a realização de
suas tarefas e, finalmente, o jogo de poder e os conflitos de interesses
que estão inextricavelmente implicados na circulação
social desta informação (MESQUITA, 1995).
Um dos principais problemas do Jornalismo como modo de conhecimento é
a falta de transparência destes condicionantes. A notícia
é apresentada ao público como sendo a realidade e, mesmo
que o público perceba que se trata apenas de uma versão
da realidade, dificilmente terá acesso aos critérios de
decisão que orientaram a equipe de jornalistas para construí-la,
e muito menos ao que foi relegado e omitido por estes critérios,
profissionais ou não.
Neste ponto, a proliferação recente de instituições
como o provedor de leitores – o ombudsman – e os observatórios
de imprensa são certamente um progresso, não apenas pelo
que possam discutir diretamente da produção da mídia,
mas também por contribuir para levantar o véu que encobre
os procedimentos habituais de construção da informação
jornalística. Outro avanço, destacado por Freire, é
a abertura da mídia ao diálogo com o público através
das formas de interatividade disponibilizadas pela técnica, como
na década de oitenta já observava no rádio (FREIRE
& GUIMARÃES, 1984:29).
Também problemática para o jornalismo enquanto conhecimento
é a velocidade de sua produção. O jornalismo se caracteriza
pela dupla contemporaneidade: relato atual de fatos atuais, e cada vez
mais pela instantaneidade, perseguindo a simultaneidade entre o relato
e o relatado. No entanto, ao mesmo tempo em que a velocidade representa
um limite, representa também uma vantagem em relação
a outros modos de conhecimento, já que a velocidade não
é uma característica exclusiva do jornalismo, mas sim da
civilização em que vivemos e que, por funcionar assim, necessita
de informações produzidas rapidamente. “Hoje o poder, por
exemplo, é de quem tem informações e as manipula
para dirigir a comunicação”, observa Freire (apud PASSETTI,
1998:103), salientando a importância estratégica da velocidade
da informação e da comunicação para a luta
política no novo contexto globalizado.
E, por fim, há que considerar a espetacularização
como um aspecto problemático do jornalismo como conhecimento. O
que distingue uma matéria jornalística de um relato científico,
de um texto didático ou de um relatório policial é
o fato de que se dirige a pessoas que não tem obrigação
de ler aquilo. Em consequência, procura de alguma forma aliciar
as pessoas para que se interessem por aquela informação,
através de técnicas narrativas e dramáticas. Para
Freire, este tipo de preocupação também deveria estar
presente na escola: “...- sonhamos com uma escola que, sendo séria,
jamais vire sisuda. A seriedade não precisa de ser pesada. Quanto
mais leve é a seriedade, mais eficaz e convincente é ela.
Sonhamos com uma escola que, porque séria, se dedique ao ensino
de forma competente, mas, dedicada, séria e competente ao ensino,
seja uma escola geradora de alegria.” (FREIRE, 1991:37)
No jornalismo, o uso de técnicas narrativas e de espetacularização
se justifica amplamente pela eficácia comunicativa e cognitiva
que proporcionam. O problema é quando passam a ser utilizadas em
função de objetivos que não os cognitivos, como a
luta comercial por audiência e o esforço político
de persuasão. No cotidiano do jornalismo praticado em nossas sociedades,
é muito difícil distinguir entre estes três tipos
de objetivo.
Da mesma forma, é difícil discernir sobre as origens e os
objetivos que orientaram o desenvolvimento de determinados formatos e
técnicas editoriais, consagrados hoje por sua eficácia no
contexto da mídia comercial. Em seus últimos escritos, Freire
deixou uma crítica à linguagem da televisão (leia-se:
do telejornalismo) que, segundo ele, utiliza “uma sintaxe que reduz a
um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não
há já está feito”:
“Mais ainda, que diversifica temáticas no
noticiário sem que haja tempo para a reflexão sobre
os variados assuntos. De uma notícia sobre Miss Brasil se passa
a um terremoto na China; de um escândalo envolvendo mais um
banco delapidado por diretores inescrupulosos temos cenas de um trem
que descarrilou em Zurique. O mundo encurta, o tempo se dilui. O ontem
vira agora; o amanhã já está feito. Tudo muito
rápido. Debater o que se diz e o que se mostra e como se mostra
na televisão me parece algo cada vez mais importante.” (FREIRE,
2000:109) |
A aplicação das idéias de Freire no aperfeiçoamento
do jornalismo
Embora tão crítica em relação
à mídia e ao jornalismo quanto sempre foi em relação
à educação, a visão de Freire também
aí é não se contenta apenas com a crítica:
“A alfabetização em televisão não é
lutar contra a televisão, uma luta sem sentido...”(FREIRE, 2000:109).
Pelo contrário, aponta para a busca de alternativas na prática:
“É certo que mulheres e homens podem mudar
o mundo para melhor, para fazê-lo menos injusto, mas a partir
da realidade concreta a que ‘chegam’ em sua geração.
E não fundadas ou fundados em devaneios, falsos sonhos sem
raízes, puras ilusões. O que não é porém
possível é sequer pensar em transformar o mundo sem
sonho, sem utopia e sem projeto. (...) A transformação
do mundo necessita tanto do sonho quanto a indispensável autenticidade
deste depende da lealdade de quem sonha às condições
históricas, materiais, aos níveis de desenvolvimento
tecnológico, científico do contexto do sonhador. Os
sonhos são projetos pelos quais se luta. (...) Possivelmente,
um dos saberes fundamentais mais requeridos para o exercício
de um tal testemunho é o que se expressa na certeza de que
mudar é difícil mas é possível. É
o que nos faz recusar qualquer posição fatalista que
empresta a este ou àquele fator condicionante um poder determinante,
diante do qual nada se pode fazer.” (FREIRE, 2000:55) |
A perspectiva da prática é o que torna o desenvolvimento
de um “método Paulo Freire de jornalismo” um profícuo campo
de investigação acadêmica e profissional. Um método
pensado não para o desenvolvimento de um “jornalismo ideal” para
uma “sociedade ideal”, mas para o aperfeiçoamento da prática
real em condições limitadas, para a intervenção
na realidade contraditória, enfrentando “situações-limite”
para a concretização de um “inédito viável”
(FREIRE, 1970:110).
O desenvolvimento de tal método certamente se apoiaria na filosofia
de Freire sobre a educação, em sua teoria do conhecimento
e em sua experiência pedagógica, confrontando os conceitos
e as técnicas às necessidades da prática jornalística
e as suas particularidades. Requer, portanto, não apenas conhecimento
da obra de Freire, mas também domínio da atividade profissional.
Tal método se aplicaria tanto à produção do
jornalismo, enquanto prática cognitiva dos jornalistas, quanto
a sua recepção pelo público, onde a atividade cognitiva
se refaz. E, certamente, teria conseqüências importantes também
no ensino do jornalismo.
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