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Ciências da Comunicação na América Latina
 
José Marques de Melo
Professor emérito da Universidade de São Paulo (Brasil).

Há 10 anos, as Ciências da Comunicação começavam a perfilar, na América Latina, o capítulo histórico da institucionalização enquanto área do conhecimento. Ao promover o I Congresso Latino-Americano de Pesquisadores da Comunicação (Embu-Guaçu, São Paulo, Brasil, 1992), assumíamos coletivamente o compromisso de cimentar as bases de uma comunidade acadêmica que, embora dispersa, demonstrava enorme pujança cognitiva.
Desde sua fundação, em 1978, a nossa associação vinha preservando e fortalecendo a tarefa de reconhecer, diagnosticar e interpretar os fenômenos comunicacionais peculiares à geografia latino-americana. Contudo, inexistia um fórum capaz de sistematizar e confrontar criticamente as observações e descobertas feitas em diferentes países, esboçando generalizações no tempo e no espaço, para compartilhar com as novas gerações de pesquisadores.
Os nossos congressos bienais forjaram não apenas um ambiente de diálogo intelectual, intercâmbio metodológico e validação científica, mas permitiram robustecer a identidade latino-americana no cenário mundial da área de saber a que pertencemos. As utopias acalentadas pelos visionários outrora inseridos naquele movimento internacionalmente legitimado como Escola Latino-Americana de Comunicação [1] passaram a ser difundidas e atualizadas por grupos hoje articulados em âmbitos locais, regionais ou nacionais.
Ultrapassamos, neste início do século XXI, a fronteira da sociedade de massas para ingressar na sociedade do conhecimento. Clivada por tecnologias interativas, ela potencializa o resgate do diálogo entre pessoas, comunidades ou nações. Da mesma forma, propicia a superação do isolamento cultural, projetando ícones autóctones e identidades particulares no novo mapa do mundo.
Em que medida estamos preparados para enfrentar tais desafios, atuando como segmento acadêmico de uma corporação mais ampla, que produz, dissemina ou pesquisa os bens simbólicos em circulação na arena ciberespacial?
Antes de propor idéias para a reflexão desta emergente comunidade, julgamos indispensável contextualizar a problemática, fincando balizas referenciadoras.

Marcos cronológicos

A investigação científica da comunicação na América Latina pode ser inventariada em distintos tempos históricos.
Temos um passado remoto, perfilando a comunicação como objeto de estudos acadêmicos. Configuram-se as primeiras análises e reflexões sobre fenômenos típicos de difusão simbólica, numa conjuntura em que os intelectuais começam a despontar como vanguardas em nossas sociedades nacionais. Tais incursões assumiam o caráter de estudos ecléticos ou polivalentes, como, por exemplo, a problematização feita pelo brasileiro FERNANDES PINHEIRO, em 1856, sobre as estratégias evangelizadoras dos jesuítas. Trata-se de investigação pioneira sobre a natureza da comunicação intercultural, dimensionando a interação grupal-religiosa entre os missionários ibéricos e os nativos aldeiados. Esse mesmo autor faria em 1859 a primeira incursão analítica no terreno da comunicação massiva, questionando a primazia lusitana na introdução da imprensa em território brasileiro, a partir de evidências documentais que conferiam tal protagonismo aos invasores holandeses do século XVIII. Se revisarmos a historiografia de cada um dos nossos países, vamos encontrar estudos semelhantes que resgatam, interpretam, decifram ações comunicacionais, observadas sob o ângulo puramente retórico ou sob os prismas educativo, religioso, lúdico, comercial, legal.
Temos também um passado distante, situado na conjuntura em que a comunicação penetra no espaço universitário. Isso ocorre inicialmente na Argentina, em 1934, quando a Universidade de La Plata cria a primeira carreira de estudos no âmbito do Jornalismo, materializada através de uma parceria entre a Universidade de Columbia (New York, USA) e o Sindicato dos Trabalhadores na Imprensa de Buenos Aires. O Brasil lançaria, no ano seguinte, em 1935, o primeiro curso superior destinado a formar jornalistas e publicitários, mais sintonizado com a tradição das cátedras européias, uma marca ineludível da efêmera Universidade do Distrito Federal instituída na cidade do Rio de Janeiro. Esse projeto foi liderado pelo educador Anísio Teixeira, que enfrentou a ira da intelectualidade conservadora pela sua natureza utópico-pragmática, sendo resgatado trinta anos depois pelo espírito arrojado de Darcy Ribeiro, fundador da Universidade de Brasília, onde se instala a nossa primeira Faculdade de Comunicação de Massa.
Temos, finalmente, um passado recente, correspondente ao momento em que a pesquisa científica da comunicação já havia se desenvolvido no interior das universidades, sendo valorizada também pelas empresas, governos ou corporações profissionais. A existência de uma massa crítica de pesquisadores identificados com a nova área do conhecimento motivou, há um quarto de século, a fundação de uma entidade associativa, destinada a reunir os cientistas da comunicação atuantes nos distintos países da nossa região. Ao fundar, em Caracas, em 1978, a Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación – ALAIC, os nossos pioneiros lançavam o embrião de uma comunidade acadêmica que viria a batalhar pela legitimação social do novo campo do saber, ocupando espaços disponíveis nos organismos nacionais de fomento científico e ao mesmo tempo representando a região nos respectivos fóruns internacionais. Mais importante do que isso foi a nossa participação nos debates públicos daquela conjuntura, especialmente aqueles relacionados com a construção de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação.

Perfil sociográfico

A emergente comunidade latino-americana no campo das ciências da comunicação assumiu distintas fisionomias em épocas sucessivas.
Ela surge precocemente como uma fraternidade corporativa no período pós-guerra (anos 40 a 60). Dela fazem parte os pioneiros dos estudos setoriais sobre jornalismo, propaganda, cinema, opinião pública. São geralmente profissionais da área que ingressam no magistério universitário, como o cubano Octávio de la Suarée, o brasileiro Carlos Rizzini ou o equatoriano Jorge Fernández.
Transforma-se numa diáspora intelectual, durante os anos 70, abrigando os analistas do impacto social dos meios de comunicação de massa nos países da região. Seu contingente é formado pelos pensadores que enfrentam situações de exílio político, como o argentino Hector Schmucler, o chileno Fernando Reyes Matta, o uruguaio Roque Faraone e o peruano Rafael Roncagliolo; por figuras notáveis recrutadas pelas organizações internacionais, como o boliviano Luis Ramiro Beltrán, o venezuelano Antonio Pasquali, o paraguio Juan Diaz Bordenave; ou por migrantes intelectuais do calibre do belga Armand Mattelart, do espanhol Jesus Martín Barbero ou da norte-americana Elizabeth Fox.
Configura-se depois como uma rede investigativa, integrada pelos participantes dos fóruns e projetos patrocinados pela ALAIC, na sua primeira fase. Sua formação privilegiava aqueles pesquisadores independentes, atuando geralmente em instituições públicas, organizações-não-governamentais ou nos movimentos sociais. Suas figuras emblemáticas são a colombiana Patrícia Anzola, o peruano Luis Peirano, o venezuelano Alejandro Alfonso, a mexicana Beatris Solis ou o brasileiro Luis Gonzaga Motta.
O surgimento de uma comunidade acadêmica somente se verifica nos anos 90, esboçada a partir dos congressos bienais da ALAIC, fortalecendo-se nos Grupos de Trabalho – GTs, organizados sob a forma de núcleos temáticos. Seus participantes atuam majoritariamente nos espaços universitários, trabalhando nas faculdades de comunicação social ou nos centros de pesquisa orientados para elucidar os fenômenos da cultura de massas. Trata-se de um contingente numeroso, identificável através da ação de pesquisadores como os mexicanos Enrique Sánchez Ruiz, Raul Fuentes Navarro, José Carlos Lozano; os bolivianos Erick Torrico e Marcelo Guardia; os venezuelanos Marcelino Bisbal e Migdália Pineda; os argentinos Gustavo Cimadevilla e Nora Maziotti; os brasileiros Margarida Kunsch, César Bolaño ou Maria Immacolata Vassalo de Lopes; os chilenos Lucia Castellon e Cláudio Avendaño; o portorriquenho Eliseo Colón.
As evidências perceptíveis neste VI Congresso demonstram que a comunidade vem se ampliando e renovando, ao incorporar os estudantes dos programas de pós-graduação em ciências da comunicação ou os jovens inscritos em cursos de graduação, engajados precocemente em projetos de iniciação científica.

Itinerário

Para consolidar esta nossa comunidade acadêmica, cujo embrião é sem dúvida o histórico Congresso de Embu-Guaçu (1992) [2], torna-se necessário desenvolver iniciativas em várias frentes, superando idiossincrasias, ultrapassando preconceitos ou simplesmente construindo alianças. Resgatando os êxitos ou fracassos acumulados no último decênio, ousamos compor um mapa do percurso a ser desenvolvido pelas nossas vanguardas.
A tarefa primordial reside na ampliação e fortalecimento das comunidades nacionais de ciências da comunicação. Com exceção do Brasil e do México, que, desde os anos 70, possuem espaços acadêmicos respectivamente estruturados em torno da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação e da AMIC – Asociación Mexicana de Investigadores de la Comunicación, apenas a Bolívia tem demonstrado vitalidade associativa. Demonstração cabal de sua potência empreendedora tem sido os congressos bienais organizados pela ABOIC – Asociación Boliviana de Investigadores de la Comunicación e de sua disponibilidade para integrar-se à ALAIC, seja organizando o Seminário de Cochabamba (2000), seja liderando este Congresso de Santa Cruz de la Sierra (2002). Chile e Argentina experimentam formatos peculiares de cooperação interinstitucional, mas ainda não consolidados como estruturas permanentes, nacionalmente legitimadas. Nos demais países, onde antes surgiram entidades acadêmicas, como Venezuela, Peru ou Colômbia, as evidências disponíveis sugerem retrocessos associativos, reflexo natural das crises sócio-econômicas ou político-culturais que debilitam as respectivas sociedades nacionais.
Paralelamente, devemos redimensionar nossa cooperação internacional. Houve um recrudescimento da participação latino-americana nos fóruns internacionais da área comunicacional, especialmente nas conferências promovidas pela International Association for Media and Communication Research – IAMCR. Logo após a conferência do Guarujá, Brasil (1992), a América Latina destacou-se nos congressos de Seus (1994), Sidney (1996) e Glasgow (1998). Vem arrefecendo, contudo, desde o congresso de Singapura (2000). Em contrapartida, a presença da International Communication Association – ICA em Acapulco (2000) fomentou os contatos com a comunidade liderada pelos norte-americanos. Abrem-se, contudo, novas frentes de cooperação interregional, através dos colóquios panamericanos de Santos, Brasil (1977), Austin, Texas, EUA (1999) e Montreal, Canadá (2002) e dos encontros sulamericanos de Lodrina, Paraná (1996), Assunção, Paraguai (1998), Rio Cuarto, Argentina (1999), Montevideo, Uruguai (2000). Ampliam-se também as conexões interculturais, simbolizadas pelos encontros ibero-americanos de Santos, Brasil (1997), Santiago, Chile (200), ou Maia, Portugal (2002) ou pelos congressos lusófonos de Lisboa, Portugal (1997), Aracaju, Brasil (1998), Braga, Portugal (1999), São Vicente, Brasil (2000), Maputo, Moçambique (2002).
No plano epistemológico, torna-se inadiável a retomada da perspectiva holística e comparativa [3]. Vivemos uma conjuntura de dispersão investigativa, consequência do crescimento impetuoso da última década, suscitando a fragmentação dos objetos de estudo e conduzindo ao isolamento analítico. Urge conscientizar as lideranças da nossa comunidade para elaborar quadros elucidativos do estoque de conhecimentos já acumulados, comparando-os criteriosamente e esboçando generalizações confiáveis.
Da mesma forma, é imprescindível intensificar a nossa autonomia teórica, fomentando a critica metodológica. Trata-se de superar o reboquismo em relação às ciências sociais, assumindo nosso perfil de ciências aplicadas e recorrendo a estratégias investigativas que permitam estocar conhecimentos capazes de melhorar a qualidade dos produtos midiáticos demandados pela sociedade. Devemos preservar o diálogo com as ciências sociais, em condições equilibradas de parceria acadêmica, superando um certo complexo de inferioridade intelectual que fragiliza parcela hesitante da nossa comunidade.
Outro desafio imediato é a recuperação da natureza processual da comunicação. As tendências recentes de pesquisas centradas nas mediações (estudos de recepção), ideologia (análises de discurso) e mercadologia (marketing político) estão contribuindo para descaracterizar a comunicação enquanto fenômeno coletivo. Torna-se imprescindível contemplar a comunicação como processo social, incentivando estudos sobre o comportamento dos emissores (mapas etnográficos ou sociográficos) e sobre os efeitos (impactos psicossoais, políticos, educativos), com a finalidade de influir na etapa de construção de novos produtos midiáticos. Trata-se de produzir conhecimento aplicável ou de fazer a crítica socialmente utilitária.

Nessa linha de ação, deve-se propiciar o resgate do conhecimento empírico, em sua tríplice dimensão: autóctone, mestiço e popular. A atitude de deslumbramento em relação às teorias e metodologias forâneas traduz o nosso ancestral “complexo do colonizado”. Desdenhamos tudo aquilo que é nativo, peculiar, rústico, ao mesmo tempo em que recusamos as demandas populares. Grande parte da tradição comunicacional latino-americana [4] provém das adaptações metodológicas que fizemos de modelos importados e de soluções engenhadas que assimilamos das culturas populares. Na formação das novas gerações de comunicadores, devemos ter coragem suficiente para recorrer ao arsenal empírico estocado pelas corporações profissionais, ajudar a sistematiza-lo e atualizá-lo a partir do referencia crítico que sempre embasou o trabalho universitário.
Como corolário, devemos intensificar o resgate do pensamento comunicacional latino-americano [5], que vem se destacando por sua capacidade inovadora, arrojada e criativa. Sem assumir comportamento xenófobo, chegou o momento de reconhecermos que a América Latina tem um legado comunicacional de boa qualidade, reconhecido e reverenciado internacionalmente. Trata-se, agora, de potencializa-lo e de faze-lo avançar, ocupando o espaço que nos cabe no atlas mundial das ciências da comunicação.
A globalização configura-se como processo historicamente irreversível, embora revele uma nítida fisionomia multicultural . Por isso mesmo, devemos fincar nossas marcas e signos na geografia do século XXI, dialogando com os parceiros hegemônicos, porém assumindo atitude clivada pela auto-estima intelectual, esbanjando soberania e transparecendo altaneirismo.

 

 

   Editado el 3 de mayo de 2003.
 
 
(1) MARQUES DE MELO, José, Communication Research: New challenges of the Latin American School, In: LEVY & GUREVICH (eds.), Defining Media Studies, New York, Oxford University Press, 1994, p. 424—432.

 
(2) MARQUES DE MALO, José, Comunicación Latinoamericana: desafios de la investigación para el siglo XXI, São Paulo, ALAIC, 1992
 
(3) A plataforma para essa empreitada foi erigida pela própria ALAIC, através do projeto de resgate documental liderado por Patrícia Anzola e Luis Peirano. Dele resultaram os seguintes repertórios bibliográficos: PEIRANO, Luis & KUDO, Tokihiro, Investigación en Comunicación Social en el Peru, Lima, DESCO, 1982; MUNIZAGA, Gisele & RIVERA, Anny, La Investigación en Comunicacón Social en Chile, Lima, DESCO, 1983; MARQUES DE MELO, José, Inventário da Pesquisa em Comunicação Social no Brasil, São Paulo, PORTCOM / INTERCOM, 1984; ANOLA, Patrícia & COOPER T., Patrício, La Investigación en Comunicacón Social en Colombia, Lima, DESCO, 1985; RIVERA, Jorge B., La Investigación en Comunicacón Social en Argentina, Lima, DESCO, 1986; BELTRÁN, Luis Ramiro /SUÁREZ, Carlos /ISAZA, Guillermo, Bibliografía de Estudios sobre Comunicación en Bolívia, La Paz, PROINSA, 1990; ALMENGOR, Manuel /ARAÚZ, Javier /ÓLCHER, Ileana /TUÑON, Modesto, La Investigación en Comunicacón Social en Panamá, Panamá, Instituto Nacional de Cultura, 1992.
 
(4) Essa tradição começa a ser resgatada através dos Anais da Escola Latino-Americana de Comunicação, dos quais destacamos duas fontes basilares: MARQUES DE MELO, José & GOBBI, Maria Cristina, Gênese do Pensamento Comunicacional Latino-Americano, São Bernardo do Campo, Editora UMESP, 1999 e MARQUES DE MELO, José; GOBBI, Maria Cristina & KUNSCH, Waldemar, Matrizes Comunicacionais Latino-Americanas: Marxismo e Cristianismo, São Bernardo do Campo, Editora UMESP, 2002.
(5) Vários autores fizeram recentes contribuições significativas para esse inventário: FUENTES, Raul, Um campo cargado de futuro: el estudio de la comunicación en América Latina, México, CONEIC, 1992; OROZGO, Guillermo, La investigación de la comunicación dentro y fuera de América Latina, La Plata, UNLP, 1997; MARQUES DE MELO, José, Teoria da Comunicação: paradigmas latino-americanos, Petrópolis, Vozes, 1998; BERNEDO, Franz Portugal, La investigación de la comunicación en América Latina: 1970-2000, Lima, APFACOM, 2000; SANTAGADA, Miguel Angel, De certeza e ilusiones: trayectos latinoamericanos de investigación en comunicación, Buenos Aires, EUDEBA, 2000; SANGUINETTI, Luciano, Comunicación y medios: claves para pensar y enseñar uma teoria latinoamericana sobre comunicación, La Plata, UNLP, 2001; GOBBI, Maria Cristina, Escola Latino-Americana de Comunicação: o legado dos pioneiros (tese de doutorado), São Bernardo do Campo, UMESP, 2002.